
Vênus de Willenford
Dentre os mamíferos até então estudados a este respeito, os seres humanos apresentam a maior proporção de gordura corporal ao nascimento. Nascemos com um percentual de gordura superior a, por exemplo, leões marinhos, elefantes marinhos, babuínos e ursos pretos, e esta gordura, armazenada na forma de tecido adiposo, exerce uma variedade de funções fundamentais para o funcionamento adequado do organismo humano. Contudo, devido a questões de cunho cosmético e psicológico, os adipócitos (células que compõe o tecido adiposo) são o tipo celular não maligno mais vilipendiado em nossos dias. Isto nem sempre foi assim, como pode ser observado, por exemplo, na arte medieval, período no qual a obesidade era retratada como símbolo de saúde, fertilidade e beleza. O motivo está relacionado com a mortalidade elevada causada pela escassez de alimentos, o que moldava a relação das pessoas com a magreza, sinônimo de sofrimento e morte. Algo parecido ocorre ainda hoje com pessoas que tem parentes residentes nos rincões do país, e nas viagens de férias recebem deles elogios saudando sua saúde quando estão acima do peso. Para muitos estudiosos, a Vênus de Willenford, esculpida a 20.000 anos, é uma representação de exaltação da obesidade como símbolo de saúde e fertilidade. Outro exemplo da variedade de significação cultural dada ao tecido adiposo pode ser apreciado observando-se a função deste nos lutadores de sumo, para os quais o excesso de gordura corporal é fator determinante no desempenho atlético. Enfim, nossa relação com a gordura corporal tem íntima relação com as funções que atribuímos à mesma, seja saúde, fertilidade, estética ou desempenho.
Percentual de gordura ao nascer em diferentes animais.
Durante muito tempo os estudiosos interessados no assunto consideravam que a função do tecido adiposo em humanos era essencialmente a de estocar o excesso de energia. Contudo, conforme o interesse científico por este tecido aumentou e novas técnicas e possibilidade de investigações surgiram, revelou-se uma grande diversidade de processos biológicos que estão sob o controle do tecido adiposo. Desde a sustentação do metabolismo cerebral do neonato, cujo cérebro é um dos maiores consumidores de energia entre os animais, passando por proteção anatômica, controle da temperatura corporal, controle do sistema neural, sistema endócrino, sistema imunitário e sistema reprodutor, para citar apenas algumas.
Percentual de oxigênio destinado ao cerebro em diferentes animais.
Um alerta importante é o fato de que o termo tecido adiposo não se refere a um único tipo de tecido. As células que compõe o tecido adiposo são denominadas adipócitos, e encontramos pelo menos três tipos diferentes no organismo humano: Adipócitos Brancos, Adipócitos Marrons e Adipócitos Beges. O tecido adiposo branco compõe a maior parte do tecido adiposo, e é essencialmente este que seguramos através de uma preensão da pele. O principal responsável pela famigerada obesidade. O tecido adiposo marrom apresenta proporção bem menor em humanos adultos, e é especialista em dissipar energia sob a forma de calor. Ele esta presente em quantidade significativa em neonatos, o que é importante para a manutenção da temperatura do bebe após deixar o útero, e pode ser estimulado a se desenvolver em humanos quando expostos cronicamente ao frio ou a estímulo adrenérgico, como demonstrado por estudo em escandinavos com trabalhadores constantemente expostos ao frio, e estudos com pessoas com a doença feocromocitoma. O tecido adiposo marrom também é importante para produção de calor em animais que hibernam. Já os adipócitos beges são células recentemente descobertas em roedores expostos ao frio ou a estímulo adrenérgico. Nestas condições estas células surgem entre aquelas do tecido adiposo branco, e parecem ter algumas características biológicas bem diferentes dos adipócitos brancos e dos marrons. Algumas das mais relevantes descobertas sobre as funções deste importante tecido estão resumidas na figura abaixo:
Principais descobertas científicas sobre o funcionamento e as funções do tecido adiposo.
Evidentemente, um dos fatores que estimularam o grande aumento no número de pesquisas sobre o tecido adiposo foi sua associação com doenças de elevada incidência como obesidade, diabetes tipo II, doenças cardiovasculares e resistência à insulina. Estas doenças fazem parte de um grupo de patologias que hoje responde pela maior incidência de mortalidade no planeta, as chamadas doenças crônicas não transmissíveis (DCNT).
Uma pergunta que insiste em instigar a curiosidade dos pesquisadores é “porque somos obesos”? Se a obesidade é uma doença que trás tantos malefícios a saúde, como explicar, do ponto de vista evolutivo, que a incidência desta patologia seja ainda tão elevada? Sempre podemos lançar mão, é claro, do clássico raciocínio de balanço energético. Isto é, somos obesos porque consumimos mais energia do que gastamos. No entanto, apesar de esta afirmação explicar boa parte dos casos de obesidade, ela não esclarece os dados que mostram significativa variação no tecido adiposo acumulado em diferentes grupos de indivíduos submetidos a diferentes padrões nutricionais, e tampouco explica porque, evolutivamente pensando, ainda permanecem entre os humanos genes capazes de promover a obesidade e adaptações metabólicas capazes de promover doenças associadas a esta patologia. Numa tentativa de responder a esta questão o pesquisador James V. Neel propôs, há cinquenta anos, uma hipótese para tentar explicar a origem evolutiva da obesidade e do diabetes em seres humanos. Sua teoria afirma que nossa tendência para desenvolver obesidade é decorrente de uma característica biológica que teria sido benéfica aos nossos ancestrais remotos, humanos e hominíneos forrageadores, durante o paleolítico, principalmente durante períodos de variação na disponibilidade de alimentos. Nesta situação, uma adaptação metabólica que atue preservando a energia ingerida durante períodos de disponibilidade de alimentos traria vantagens de sobrevivência e reprodução durante os períodos de escassez. Em outras palavras, aqueles organismos com maior capacidade para armazenar gordura seriam beneficiados. Os genes responsáveis por esta característica metabólica foram denominados por Neel como genes de economia (thrifty genes), e nós, seres humanos modernos, seríamos os titulares desta herança genética. Contudo, os genes de economia podem representar um malefício quando o organismo vive em uma situação ecológica mais estável, com constante aporte de nutrientes e onde a escassez não é um risco iminente. Nesta situação, que é a descrição de grande parte das sociedades atuais, os genes de economia passam a aumentar o risco de desenvolvermos obesidade e as doenças associadas a ela como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer.
Teorias adicionais vêm questionando a hipótese original de Neel, e uma delas é a teoria da origem desenvolvimentista da obesidade (Developmental Origins of Obesity), que investiga as relações entre o desenvolvimento intrauterino e a obesidade na vida adulta. O excesso de gordura observado em bebes humanos já foi interpretado como uma adaptação para a falta de pelos corporais, conforme comparado com outros animais. Deste modo, a função dos pelos como isolante térmico seria suprida pelo tecido adiposo. Porém, a observação de que a quantidade de tecido adiposo não varia quando se compara esquimós, e outros habitantes das regiões circumpolares, com habitantes de latitudes mais baixas, trás uma importante dificuldade para esta hipótese. Outra perspectiva vê este excesso de gordura do neonato como uma adaptação fundamental para suprir as demandas metabólicas do grande cérebro humano, o que é corroborado pelo fato de que, ao nascermos, metade de nosso metabolismo corporal é devotado para este órgão. Este significativo estoque de energia também é importante para neutralizar parte do estresse relacionado à saída do ambiente intrauterino, e, consequentemente, a mudança nos padrões de aquisição de energia. Esta combinação de fatores, estresse do nascimento e alta demanda metabólica cerebral, seria uma pressão biológica suficiente para favorecer a adiposidade neonatal como estratégia para sobrevivência. Um fator adicional, atuando em paralelo ao que foi exposto acima, é dado por um considerável conjunto de evidencias demonstrando a existência de consequências importantes do padrão nutricional durante o desenvolvimento intrauterino sobre características biológicas na vida adulta como o apetite, a sensibilidade à insulina e o peso corporal.
Estas observações levaram ao surgimento de uma teoria que propõe a habilidade fetal de ativar adaptações metabólicas, alterando a função de determinados genes (muitas vezes por via epi-genética), em resposta as informações biológicas que recebem enquanto estão no útero. Por exemplo, a desnutrição materna levaria a ativação de mecanismos de economia de energia (armazenamento de gordura a açúcar) em intensidade superior aquelas que seriam observadas em situação de normalidade. Deste modo, o bebe estaria se programando metabolicamente para enfrentar as condições ecológicas adversas quando nascer, usando como norteador desta programação as informações nutricionais recebidas pela placenta. Se o ambiente é escasso em nutrientes, o nascimento de bebes hábeis em preservar energia é evolutivamente vantajoso. Esta teoria foi denominada “fenótipo de economia” (thrifty phenotype), fazendo um paralelo com o nome da teoria de Neel, mas enfatizando que a adaptação não se daria no nível de seleção gênica, mas na modificação do padrão de atividade de determinados genes.
Uma evidência experimental para esta teoria vem de estudos com populações que passaram pela fome do inverno holandês, entre 1944 e 1945. Nestes estudos observa-se que as mulheres grávidas durante o período, no qual os nazistas impuseram um racionamento severo de alimentos, levando a população a um grave estado de desnutrição, deram a luz a crianças que, quando adultas, apresentam elevada incidência de obesidade e doenças relacionadas.
Muitos outros aspectos e teorias a respeito do surgimento da obesidade e das funções do tecido adiposo podem ser abordadas. As explicações científicas finais para estas questões ainda estão longe de serem alcançadas e sempre caminharão em paralelo com as explicações culturais, derivadas da diversidade de percepções e valores nas diferentes sociedades.
Referencias: