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Quem gasta mais energia, os sedentários ou os caçadores coletores? A resposta pode ser surpreendente

Gleisson Brito

Há aproximadamente 10.000 anos uma invenção revolucionou e modificou para sempre o destino das sociedades humanas. Tradicionalmente nômades, na maior parte de sua história a espécie humana manteve sua subsistência através das atividades de caça e coleta, um padrão também conhecido como forrageamento. Explorar e migrar eram a regra básica. Contudo, em algum momento no decurso desta história a humanidade desenvolveu uma nova estratégia de domínio sobre a natureza: a agricultura. De um início modesto, geograficamente restrito ao oriente médio, a agricultura passou, em um breve período de tempo, a ser uma prática vastamente disseminada nas mais diversas sociedades humanas existentes. O padrão nômade deixa de ser a regra e se estabelecem as chamadas sociedades sedentárias. De fato, antropologicamente, o termo sedentarismo faz referência à transição cultural da colonização nômade para o permanente estabelecimento em um território.


Muitos estudos comparativos são realizados para apreciar aspectos bioculturais das sociedades de caçadores coletores e das sociedades sedentárias. A partir destes estudos podemos entender um pouco melhor como o organismo humano vem respondendo as recentes modificações ecológicas trazidas pelo fenômeno da civilização. Um tema de acirrado debate é o padrão de gasto energético em atividade física nas sociedades sedentárias e entre os caçadores coletores. O termo atividade física é entendido aqui como todo e qualquer movimento corporal para a locomoção, trabalho ou para o lazer. Muitas vezes o argumento explicativo para o excesso de pessoas com sobrepeso e obesas em nossa vizinhança é uma comparação, inferindo que gastamos pouca energia com atividades físicas, principalmente se colocarmos em perspectiva nossos ancestrais ou as sociedades nômades ainda existentes. As estatísticas alarmantes fomentam uma ânsia por uma explicação definitiva, e instigam muito a imaginação: No mundo, em 2015, aproximadamente uma em cada três pessoas terá sobrepeso, e uma em cada dez será obesa.



Desequilíbrio energético e excesso de peso


A causa mais comum do aumento de peso em humanos está associada com um desequilíbrio no balanço energético. Isto é, um descompasso entre o total de calorias que ingerimos e o total de calorias que gastamos. Simplificadamente, sempre que ingerimos mais do que gastamos, o resultado é algum acúmulo do excesso na forma de gordura corporal. Na realidade, sabemos hoje que o nutriente mais acumulado é a própria gordura ingerida, e que a maior parte dos carboidratos (açúcares) ingeridos tende a ser oxidado. Mas não se engane, os açúcares promovem um fenômeno denominado “efeito poupador de gordura”, mas este é um assunto para outro tópico. Leia mais aqui se tiver interesse. Geralmente consideramos que o padrão alimentar e de atividade física da sociedade ocidental se desviou substancialmente das condições originais nas quais a fisiologia metabólica de nossa espécie se desenvolveu. A tecnologia promoveu, simultaneamente, uma redução dos níveis de atividade física e a manipulação dos alimentos para formas com maior densidade calórica, mais facilmente assimiláveis pelo organismo, menos nutritivas e que modificam de modo importante o controle do apetite.



Determinar qual aspecto do estilo de vida ocidental é realmente aberrante para nossa espécie e implica no maior risco de obesidade é complicado, pois existem dados conflitantes e limitados a respeito da dieta e do metabolismo em populações não ocidentais. Por exemplo, a dieta ocidental é mais rica em açúcar e tem maior densidade energética que a maioria das dietas de populações tradicionais e dos alimentos não processados. Contudo, muitas sociedades de caçadores coletores consomem, sazonalmente, uma grande porção das calorias diárias na forma de mel, que tem alta concentração de glicose e frutose. E em relação ao gasto energético, enquanto algumas populações de agricultores apresentam altos níveis de atividade física diária, estudos que acompanharam um grande número de distintas comunidades ao redor do mundo não conseguiram demonstrar um efeito do desenvolvimento socioeconômico – um indicador grosseiro de mecanização e dieta – sobre o gasto energético diário ou o nível de atividade física. Uma complicação adicional é a falta de medidas da atividade metabólica de caçadores coletores, cuja dieta e estilo de vida provêm os melhores modelos para estudo da evolução humana.


Para testar a hipótese de que caçadores coletores gastam mais energia no dia a dia do que indivíduos pertencentes a sociedades com distintos padrões econômicos de subsistência, como economia dependente da agricultura ou de mercado, um estudorecente examinou o nível de atividade física e de gasto energético diário em um grupo de forrageadores denominados Hazda. Os Hadza são uma população de caçadores coletores que vivem em um ambiente de savana no norte da Tanzânia. Nenhuma população vivente constitui um modelo perfeito do passado de nossa espécie, contudo, os Hadza apresentam um estilo de vida que é similar em diversos aspectos aquele de nossos ancestrais do Pleistoceno. Eles caçam e coletam descalços, com arco e flecha, pequenos machados e varas afiadas, sem auxílio de equipamentos ou ferramentas modernas. De modo similar a muitas outras sociedades forrageadoras há uma divisão sexual do trabalho, com homens dedicados a caça e a coleta de mel, enquanto as mulheres coletam alimentos vegetais. O forrageamento dos homens é tipicamente mais longo que o das mulheres e, enquanto as mulheres trabalham em grupos, os homens tipicamente caçam sozinhos. Aproximadamente 95% das calorias da dieta desta população vêm de alimentos como tubérculos, frutas e mel.


O estudo em questão comparou o gasto energético e a composição corporal dos Hadza com dados de outras populações similares obtidos em outros estudos e também com medidas realizadas pelos pesquisadores em norte americanos adultos. A expectativa dos autores, em função do estilo de vida tradicional e fisicamente ativo do grupo estudado, seria encontrar baixos níveis de gordura corporal e maiores níveis de gasto energético diário nesta população, em comparação com populações sedentárias e com acesso a alimentação industrializada. De fato, os resultados (apresentados na tabela abaixo) mostraram que os Hadza são muito ativos fisicamente e magros, com percentual de gordura corporal dentro dos valores mais baixos das faixas classificadas como “saudável” para populações ocidentais.


Contudo, contrário as expectativas, o gasto energético diário dos Hadza é similar ao das populações ocidentais, tanto na comparação com homens quanto na comparação com mulheres, conforme demonstrado na tabela acima e no gráfico abaixo. Um dado interessante encontrado pelo estudo foi que agricultores, representados no gráfico pelas bolas azuis, apresentaram gasto energético diário superior ao dos Hazda e das populações ocidentais. Estes resultados desafiam a visão tradicional a respeito do estilo de vida da sociedade ocidental, que pressupõem um nível de gasto energético anormalmente baixo e o correlaciona como causa primária com as elevadas taxas de sobrepeso e obesidade nesta população.


A similaridade do gasto energético diário entre esta população de caçadores coletores e as populações ocidentais amostradas sugere que mesmo diferenças dramáticas no estilo de vida podem acarretar um efeito mínimo sobre o gasto energético diário, e é consistente com a visão de que a diferença na prevalência de obesidade entre populações pode ser consequência principalmente do consumo energético e sofrer menor influência do gasto energético. A comparação da quantidade de calorias ingerida por populações de caçadores coletores e populações ocidentais também é tema de grande debate científico, com algumas evidências indicando que a ingestão total de calorias é maior entre os caçadores coletores. Contudo, a composição destas calorias é bastante diferente, principalmente no seu conteúdo de fibras. Além disto, hoje sabemos que o conteúdo absoluto de calorias não é um dado suficiente para, isoladamente, determinar o efeito da alimentação sobre a obesidade. Por exemplo, duas pessoas ingerindo exatamente a mesma quantidade de calorias podem apresentar efeitos opostos no peso corporal se a composição das calorias for diferente, pois o organismo absorve e armazena o alimento de modo diferente dependendo da forma como este é fornecido. Os autores do estudo ainda apontam que um estilo de vida tradicional pode não proteger contra a obesidade se a dieta promove um maior consumo de calorias, e que, deste modo, esforços para suplementar a alimentação de populações saudáveis de regiões em desenvolvimento deve evitar o excesso de alimentos altamente processados, energeticamente densos, mas nutricionalmente pobres. Este tipo de intervenção já é correlacionado a resistência à insulina e doenças cardiovasculares entre forrageadores australianos em transição do nomadismo ao sedentarismo.


Mulheres Hadza


Os estudos com populações tradicionais ainda tem muito a nos contar sobre a biodiversidade da fisiologia humana. Desvendar e compreender os mecanismos que promovem diferenças no comportamento metabólico é um grande desafio, porque as interações entre a fisiologia metabólica, atividade física e o ambiente são complexas. Por exemplo, os forrageadores Ache, do Paraguai, apresentam níveis de leptina e testosterona significativamente mais baixos que aqueles observados em norte americanos.


Dados de gasto energético de populações de caçadores coletores provêm perspectivas adicionais sobre os humanos Paleolíticos e a origem da agricultura, e enquanto o estilo de vida dos caçadores coletores do Pleistoceno tardio foi certamente muito ativo fisicamente, os resultados deste estudo sugerem que seu requerimento energético diário provavelmente não diferia muito das populações ocidentais atuais. É interessante notar ainda que o gasto energético diário é similar em uma grande variedade de populações humanas adaptadas a diferentes economias, clima e estilo de vida. Deste modo, é possível que o gasto energético total seja um traço fisiológico relativamente estável na espécie humana, mais um produto de nossa herança genética que da variedade de estilos de vida, uma característica sobre a qual atuou a seleção natural. De fato, um grande número de evidências oriundas do metabolismo de mamíferos revela que a taxa metabólica das espécies reflete suas histórias evolutivas, uma vez que o gasto energético diário responde, no tempo evolutivo, às pressões ecológicas como disponibilidade de alimento e risco de predação.


Referências



Flexibilidade Metabólica e Obesidade e Atividade Física


 
 
 
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