Como a interpretação equivocada da distribuição de votos no território brasileiro é um exemplo didático para compreender o desenvolvimento das ideias raciais.
A falsa ideia de homogeneidade cultural ou biológica de diferentes grupos humanos depende da completa supressão de todo um conjunto de dados que, na verdade, mostram a existência de imensa variabilidade biocultural interna nas populações humanas. Esta forma de manipulação de dados tenta demonstrar a existência de “tipos humanos” e já serviu a interesses separatistas em diferentes momentos na história. As leis de segregação racial, por exemplo, supunham uma homogeneidade biológica da “raça” branca e outra da “raça” negra, e chegaram a proibir a miscigenação sob o argumento de degeneração racial, devendo brancos e negros permanecer definitivamente separados. Já a recente onda separatista que ronda as redes sociais brasileiras após as eleições de 26 de outubro está apoiada em outra premissa falsa: uma suposta homogeneidade cultural, ou de ideologia política, na região norte/nordeste e outra na região sul/sudeste. Trata-se de uma tentativa absolutamente equivocada de construir a imagem de um “tipo” de brasileiro em cada região do país.
As primeiras representações gráficas que circularam na mídia nacional divulgando os resultados das eleições presidenciais apresentaram um Brasil dividido ao meio, com um mapa do território brasileiro identificando quase completamente as regiões norte e nordeste na cor vermelha, e a as regiões centro-oeste, sudeste e sul na cor azul. Se considerarmos as regiões onde os presidenciáveis representados por cada cor obtiveram maioria de votos, então este tipo de gráfico conta uma história verdadeira. Porém, o argumento de que o resultado final das eleições brasileiras é um reflexo direto e exclusivo desta configuração não é verdadeiro, e isto é facilmente demonstrável por uma análise mais criteriosa dos números absolutos divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Quando são quantificados todos os votos recebidos pelo partido representado pela cor vermelha no mapa, verifica-se que este teve mais votos na região sul em comparação com a região norte, e mais votos nas regiões sul e sudeste somadas, em comparação as regiões norte e nordeste somadas. Logo, um mapa do Brasil que fosse colorido com base nos números absolutos teria uma disposição bastante diferente. Estes dados implodem a afirmação de que o resultado da eleição pode ser atribuído exclusivamente a uma parte específica do território brasileiro.
Fonte da Imagem: Blog Biologia Humana: www.biologiahumana.com
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Estes dados já seriam o suficiente para refutar qualquer discurso separatista. Contudo, uma análise mais minuciosa ainda trás a tona outra importante questão: A grande variabilidade interna no resultado da votação observado nas diferentes regiões do país. Este dado é facilmente visualizado com o mapa construído pelo pesquisador da Unicamp,Thomas Conti, o qual viralizou na internet após ser publicado em sua rede social.
O trabalho de Conti comprova que é falsa a ideia de homogeneidade política no sul, norte, sudeste, nordeste ou centro-oeste do Brasil e, em conjunto com os dados apresentados aqui, demonstra de maneira categórica que é absolutamente equivocada a tentativa de delinear uma “tipologia” do voto brasileiro. Antes o que se observa é uma grande diversidade na orientação política regional, que deve ser entendida como resultado do amadurecimento democrático e que constitui um importante contra-argumento para qualquer tipo de ideias ou políticas que tentem dividir a nação brasileira. Não se pode ignorar que a criação de desconforto, desentendimento e preconceito entre regiões do país serve aos interesses de muitos grupos políticos.
Corroborando a demonstração de falsa dicotomia geográfica de votos, e apontando um equívoco típico do senso comum brasileiro, os dados percentuais mostram que esta foi a primeira eleição, desde 2002, em que os votos no partido atualmente governante vieram mais do nordeste que do sudeste. Por outro lado, os votos do sul e do sudeste no partido que perdeu as eleições em 2014 apresentam uma tendência a aumento recentemente.
Um equívoco antigo para fenômenos modernos.
A tentativa de encontrar homogeneidade nas populações humanas e criar “tipos” humanos distinguíveis biológica ou culturalmente não é um fenômeno novo. Carolous Linnaeus, o pai da classificação biológica, em seu clássico “Systema Naurae”, foi um dos primeiros a tentar aplicar a classificação tipológica aos humanos. Na edição de 1767 deste livro ele tratou de grupos como o Homo sapiens europaeus, que seria branco, sério e forte, o Homo sapiens asiáticus, caracterizado pela pele amarela, humor melancólico e pela avareza, o Homo sapiens afer, negro, impassível e preguiçoso, e o Homo sapiens americanus, vermelho, mal-humorado e violento. Já o médico alemão Johann Blumenbach, em sua obra intitulada “On the natural variety of mankind”, de 1795, criou classificações como Caucasianos, Mongolóides, Etíopes e Malaios, com base principalmente em características morfológicas de pessoas estudadas por ele. A primeira aplicação da palavra raça a seres humanos é atribuída a este autor.
Encontrar “tipos” humanos só é possível se ignorarmos e suprimirmos todo um conjunto de dados que, na verdade, demonstram a imensa diversidade biológica dentro de cada população que compõem nossa espécie. Qualquer discurso assim construído é pseudo-científico pois, para validar uma posição ideológica, lança mão da manipulação de dados.
O racismo científico teve como um de seus sustentáculos a suposição de que existiriam grupos humanos não apenas biologicamente separados, mas evolutivamente e culturalmente hierarquizáveis. Estas suposições foram postas por terra com o melhor entendimento da teoria evolutiva e com o desenvolvimento da área de genética humana, a qual demonstrou que a variabilidade genética de nossa espécie é grande dentro das populações, porém é muito pequena entre as diferentes populações. Demonstrou-se ainda que a espécie humana é notavelmente homogênea, e que a distância genética entre quaisquer dois seres humanos escolhidos ao acaso (ex. Um aborígene australiano e um Inuit. Um europeu e um índio sul americano. Um chinês e um mexicano. Um sul africano e um russo.) é tipicamente inferior a 10%. A unidade genética da espécie homo sapiens, que esta espalhada por todo o globo, é maior inclusive que a unidade genética de algumas populações de primatas, distantes por alguns poucos quilômetros, cuja distância gênica pode chegar a valores de 20%.
Diversidade e Unidade brasileira
O Brasil é uma nação miscigenada. Por aqui a ideia da existência de raças humanas não costuma apresentar muita força ou penetração no tecido social. Não obstante, recentemente políticas racialistas tem recebido grande atenção da mídia e do Estado brasileiro. Biologicamente o termo raça não se aplica a seres humanos, conforme os dados citados anteriormente indicam, e o estudo genético da composição biológica dos brasileiros confirma claramente tal afirmação, e implica que separar brasileiros por grupos biológicos distinguíveis depende da supressão de todo um conjunto de dados que, na verdade, demonstra a imensa diversidade biológica que compõem esta nação. Por exemplo, ao estudar a ancestralidade dos brasileiros, o geneticista Sérgio Pena demonstrou que 146 milhões de brasileiros, isto é, 86% da nação, apresentam no mínimo 10% de ancestralidade africana. E 77 milhões, isto é, 45%, apresentam mais de 90% de ancestralidade africana.
Ou seja, não se pode pintar um mapa do Brasil com delimitação geográfica de grupos com determinadas características biológicas, da mesma maneira que não é possível delimitar regiões com opções políticas homogêneas. A nação brasileira é uma só, com grande diversidade cultural e biológica em cada parte de seu território. Em cada região a população é ricamente variável, e por isso as tentativas "tipológicas" constituem um equívoco antigo para fenômenos modernos.
O pesquisador Sérgio Pena costuma afirmar que “um mundo sem raças não é um mundo onde todos são iguais. Um mundo sem raças é um mundo onde todos são igualmente diferentes.”
Fazendo um paralelo eu afirmaria que: “Um mundo sem ódio ideológico não é um mundo onde todos pensem de maneira homogênea. Um mundo sem ódio ideológico é um mundo onde se entende que a homogeneidade de pensamento não é desejável, e onde a heterogeneidade é reconhecida como pilar da democracia.”
Referências:
Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?